Mariana: tragédia completa 6 anos, e idoso morre sem ter casa reconstruída e sem ver punição
- 05/11/2021
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Parentes e amigos se despediram de agricultor na mesma semana em que desastre completa mais um ano sem conclusão de reparação. Segundo Cáritas, além de Zezinho, pelo menos 55 pessoas morreram antes de reassentamento.
José Patrocínio de Oliveira, mais conhecido como Zezinho, nasceu, cresceu e criou a família numerosa na comunidade de Paracatu de Baixo, em Mariana (MG). Oitenta e cinco anos da história do agricultor se passaram no distrito. Em 5 de novembro de 2015, porém, o “mar de lama” que jorrou da barragem da Samarco o obrigou a abandonar seu lar. E, ao longo dos últimos anos, ele sonhou com a volta para casa. Mas não deu tempo. Zezinho morreu na última semana, aos 91 anos, sem que visse nem sequer uma parede erguida.
“Ele sempre falava com a gente: ‘Eu vou morrer sem ver minha casa’. E o pior que isso aconteceu. A sensação dele era de revolta, que ele tinha demais sobre tudo que estava acontecendo. Nada da casa dele. É muita burocracia, principalmente com as pessoas mais velhas”, diz Romeu Geraldo Oliveira, filho do agricultor e integrante da comissão dos atingidos de Paracatu de Baixo.
A tragédia de Mariana, que matou 19 pessoas, devastou o Rio Doce e atingiu cidades mineiras e capixabas, completa seis anos nesta sexta-feira (5). Ano após ano, as cobranças dos atingidos permanecem: reassentamento dos moradores, reparação integral, recuperação do meio ambiente e punição de responsáveis pelo desastre.
Segundo a Cáritas, entidade que presta assessoria técnica aos atingidos em Mariana, além de José Patrocínio, pelo menos 55 pessoas morreram antes de conseguir voltar para casa.
A reconstrução das comunidades de Mariana tem sido marcada pela lentidão. As obras deveriam ter sido entregues em fevereiro deste ano – terceiro prazo anunciado desde 2015 pela Fundação Renova, entidade criada para gerir as ações de reparação. Mas isso não aconteceu.
A nova data de entrega ainda é tema de discussões judiciais, mas internamente, a fundação trabalha com uma nova meta: o fim de 2022. Os atingidos veem o prazo com desconfiança e acreditam que, mais uma vez, será descumprido. Em março, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) pediu aplicação de multa de R$ 1 milhão por dia de atraso, o que ainda segue análise da Justiça.
Na Paracatu de Zezinho, demorou mais de cinco anos e dez meses para que a primeira casa recebesse o primeiro tijolo. Atualmente, segundo a Fundação Renova, foi iniciada a etapa de construção civil de 11 residências entre mais de 80. Segundo Romeu, a casa do pai não é uma delas.
Zezinho criou os filhos com o trabalho na lavoura. Na comunidade, era conhecido por ser o homem mais velho do distrito e por estar à frente do grupo de folia de reis, que fundou há 50 anos.
Assim como ele, muitas pessoas com forte ligação com a terra e com as tradições não se adaptaram à vida na cidade, já que depois da tragédia passaram a viver em casas alugadas na área urbana de Mariana. Ele dizia se sentir preso. Em entrevista à TV Globo em 17 de novembro de 2015, ele falou do desejo de voltar para a comunidade.
"Nós estamos querendo é nossas casas lá em Paracatu mesmo. Nós não queremos em outro lugar. Eu nasci lá e quero acabar meus dias de vida lá", disse o agricultor na época.Uma pesquisa publicada em uma revista internacional neste ano aponta que 74% dos atingidos tiveram perda de qualidade vida em saúde. Mas as perdas estimadas para os idosos são comparáveis a pacientes com condições crônicas graves, de acordo com o estudo.
Em 2020, Zezinho sofreu um AVC e, no início deste ano, foi diagnosticado com Covid-19. Ele se recuperou, mas a doença causou consequências aos pulmões. Há uma semana, foi internado e, no último sábado (30), não resistiu. O enterro foi realizado no dia seguinte, na mesma semana em que a tragédia completa mais um ano.
“O sonho dele era, se morresse, que voltasse para Paracatu. Então, o sonho dele foi realizado, nós levamos ele para lá”, contou Romeu.
‘Acabou tudo’
No reassentamento de Bento Rodrigues, dez casas foram concluídas, mas de um total de mais de 200. Segundo a Fundação Renova, 87 estão em fase de construção.
Um dos imóveis é o do aposentado José das Dores Sales, de 77 anos, cerca de 40 deles vividos em Bento Rodrigues. Da casa dele, só ficaram as lembranças, algumas paredes de pé e muitos escombros.
“Acabou tudo. De vez em quando eu vou lá. A gente se sente aborrecido, mas o que fazer? Não tem jeito. E tem que achar bom ainda que não morreu”, disse.
Entre as 19 vítimas da tragédia, cinco estavam no distrito de Bento Rodrigues. As outras 14 pessoas que morreram no desastre trabalhavam no complexo onde estava localizada a barragem de Fundão. As buscas foram encerradas com 18 corpos localizados.
Segundo o aposentado, a expectativa é que casa dele fique pronta no início do ano que vem. “Estão falando que vão entregar em janeiro. Estou confiante”, afirmou. Entretanto, os moradores só devem se mudar para imóveis quando todo o reassentamento for concluído.
José das Dores afirma que, nos últimos seis anos, nunca perdeu as esperanças de poder voltar para casa. “Não pode fazer isso com nós, não. Deixar nós sem casa, não ia deixar, não”, disse.
Na comunidade de Gesteira, distrito da cidade de Barra Longa, a morosidade para as obras supera a lentidão assistida em Mariana. Como o g1 mostrou em março, lá moradores também morreram sem ter a questão da moradia reparada. Até hoje, segundo informações da Renova, o projeto é discutido judicialmente. O prazo para a entrega do reassentamento coletivo ou mesmo do início da construção não foram informados.
Maria Geralda Bento partiu antes de poder voltar para casa ou de ter uma data para isso. Ela era avó de Simone Silva, que integra a comissão de atingidos da cidade, além do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB). A professora também perdeu um tio, que aguardava pelo reassentamento.
De acordo com a Fundação Renova, 37 famílias deverão ser reassentadas em Gesteira. Mas apenas nove devem viver na comunidade que será reerguida.
É que, ao longo desses seis anos de espera, parte dos moradores desistiu de aguardar pelo reassentamento e acabou optando por soluções individuais. Vinte e oito famílias receberam propostas e fecharam acordos na modalidade denominada reassentamento familiar.
Lentidão para reparação
Promotores e procuradores vêm criticando a atuação e a postura adotada pela Fundação Renova desde sua criação, prevista em um acordo firmado em 2016 entre governos e mineradoras.
Para o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), esse termo foi firmado de forma apressada e, no decorrer dos anos, tem se mostrado ineficiente. Em março deste ano, o órgão acionou o Judiciário para pôr fim à fundação, mas o pedido de extinção segue sem julgamento, segundo o procurador-geral de Justiça, Jarbas Soares.
“Infelizmente, teve essa questão de discussão de competência. Há uma suspensão pelo STJ e nós esperamos que o ministro Og Fernandes leve esse processo logo a julgamento para pacificar essa questão”, disse na semana passada, ao apresentar um balanço da atuação do MPMG desde o rompimento da barragem de Fundão.
Segundo o procurador-geral, desde o ano passado, a elaboração de novo acordo para reparação dos danos da tragédia é discutida. A expectativa é que a repactuação ocorra em fevereiro de 2022.
De acordo com o MPMG, o objetivo é que esse novo pacto atenda “em primeiro lugar, os atingidos, em segundo, o meio ambiente e também as economias dos estados de 'Minas Gerais, do Espírito Santo e da União e dos municípios que foram gravemente impactados”.
O novo termo busca inspiração no acordo de R$ 37,68 bilhões firmado entre a mineradora Vale e governo de Minas para reparação da tragédia de Brumadinho, que deixou 270 mortos. No caso de Mariana, ainda não há definição de valores.
Paralelamente, na Inglaterra, tramita uma ação no valor de £ 5 bilhões – cerca de R$ 38 bilhões – contra a anglo-australiana BHP Billiton, controladora da Samarco ao lado da Vale.
A ação foi proposta em nome de 200 mil indivíduos, entre eles membros da comunidade indígena Krenak, 25 governos municipais brasileiros, 6 autarquias, 531 empresas e 14 instituições religiosas.
O processo chegou a ser declarado extinto, mas um recurso foi aceito, permitindo a reabertura da ação. Segundo o escritório PGMBM, atualmente, advogados trabalham para recolher novos dados e atualizar informações no processo. Uma nova audiência na Inglaterra está marcada para abril do ano que vem.
Sem punição
A tragédia de Mariana segue sem punição no processo criminal. Em 2019, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal, da 1ª Região, no Distrito Federal, decidiu, por unanimidade, retirar o crime de homicídio de dois acusados de envolvimento no rompimento e entendeu que a medida deveria ser estendida aos outros réus.
O promotor Carlos Eduardo Ferreira Pinto lamenta o percurso do processo na Justiça e defende uma mudança na legislação brasileira.
“São crimes de grande repercussão, com várias vítimas, grande dificuldade de investigação e o nosso processo penal para esse crime deveria ser revisto. Nós deveríamos ter uma avaliação, uma discussão que deveria ser travada pela Câmara dos Deputados, pelo Congresso Nacional, no sentido de trazer uma legislação efetiva para crimes dessas proporções”, afirmou.
O que diz a Fundação Renova
A Fundação Renova afirmou que cerca de R$ 6,5 bilhões foram pagos em indenizações e auxílios financeiros emergenciais para mais de 336 mil pessoas até setembro.
"As indenizações por meio do Sistema Indenizatório Simplificado, implementado pela Fundação Renova a partir de decisão da 12ª Vara de Justiça Federal, alcançaram a marca de R$ 3,4 bilhões pagos a mais de 35 mil pessoas até o fim de setembro", disse.
Em relação aos reassentamentos, a fundação afirmou que, em Bento Rodrigues, 95% das obras de infraestrutura foram concluídas e que o foco neste momento é a construção de residências. Em Paracatu de Baixo, de acordo com a entidade, cerca de 80% das obras de infraestrutura estão prontas.
Já sobre Gesteira, disse que em julho deste ano, foi necessário protocolar na Justiça uma nova proposta de premissas para a revisão do projeto conceitual, considerando a situação no que diz respeito ao número de famílias que optaram por migrar para o atendimento no reassentamento familiar, além das propostas para readequação do desenho urbano manifestadas, por exemplo, pela pela assessoria técnica Aedas.
Afirmou ainda que, em decisão proferida em agosto, a Justiça designou a realização de uma perícia para avaliar as propostas.
Ainda conforme a Renova, até agosto deste ano, foram destinados R$ 15,57 bilhões para ações reparatórias e compensatórias do rompimento da barragem de Fundão, numa mobilização que envolve cerca de 40 ONGs e 5,6 mil pessoas.